Capítulo III – Cinema – Comunicação

The Bruno de Carvalho incident: elements for a critical analysis of news production

O caso Bruno de Carvalho: elementos para uma análise crítica da produção noticiosa

Ricardo Ferreira de Almeida

Revista Europeia de Estudos Artísticos

Ana Branca Carvalho

Instituto Politécnico de Viseu

Abstract

This text aims to analyze and discuss the media work produced around the figure of Bruno de Carvalho. This object was studied using a computer program of qualitative analysis, having as theoretical framework an aggregate of references that explore the phenomenon of communication from the perspective of the systematic production of hegemonic views of the world. It was concluded that Bruno de Carvalho deserved throughout his term, and not only in its final phase, a permanent attack also that shaped the widespread perception of his figure. It is a current subject, which has been arouse gradual interest in scientific and academic production.

Keywords: news, manipulation, hegemony, communication.

Introdução

Este texto tem como objecto a produção mediática realizada em torno daquilo que definimos como “caso Bruno de Carvalho” e que passamos a explicar: numa conjuntura de animosidade geral vivida no seio do clube desportivo que presidia à data dos acontecimentos ocorridos em 2018, marcado pelo “processo Cashball” e a invasão da Academia de futebol do Sporting Clube de Portugal situada em Alcochete, foram produzidas notícias nos meios de comunicação impressos e não impressos que influenciaram a opinião pública e, concomitantemente, lapidaram a apreciação de alguns sócios que, em momentos específicos da vida interna do clube, se tornou decisiva para fortificar e reproduzir essa imagem. É nossa intenção demonstrar que a abundância de notícias que, implícita ou explicitamente, indiciavam a alegada autoria moral e factual, foi peça central nos subsequentes processos de destituição da qualidade de Presidente do Conselho Directivo do referido clube desportivo e da qualidade de sócio, assim como existiu um nexo de causalidade entre a irradiação, a leitura de notícias e a decisão dos sócios. Usamos como técnica a análise de conteúdo assistida por computador, instituindo como corpus uma amostra não causal estabelecida por conveniência, tratada após ter sido recolhida, maioritariamente, em publicações do grupo Cofina1 entre os anos de 2018 e de 2019. Usamos um quadro teórico que fornece conceitos conexos à produção hegemónica de visões do mundo, assentes em molduras de natureza mediática. Da mesma forma, enquadramos historicamente o contexto dos sucessivos episódios, encaixados numa plataforma mais ampla do fenómeno desportivo português, assinalando os seus agentes, as suas práticas e suas estruturas, procurando, no fim do texto, fornecer explicações congruentes para estas dinâmicas sociais.

1. Os mandatos de Bruno de Carvalho, seu contexto e suas dinâmicas

Bruno de Carvalho foi presidente do Sporting Clube de Portugal entre 2013 e 23 de Junho de 2018, data em que foi destituído dessa posição por uma Assembleia Geral de sócios. Em 2011 tinha sido candidato, mas perdeu as eleições para Godinho Lopes. Quando iniciou a sua campanha na presidência, a 26 de Março de 2013, e apanhando o clube na décima posição do campeonato português de futebol sénior, não evitou a pior época de sempre do clube: sétimo lugar da tabela final, a 36 pontos do campeão Futebol Clube do Porto, com 11 vitórias, 10 derrotas, 9 empates e 4 treinadores. Assim que tomou as rédeas do clube, descreve em livro um panorama geral de descrédito com o fantasma da descida de divisão a pairar no ar, brigas nos balneários, rapina de agentes de futebol, desautorização das ordens do presidente (Carvalho 2019, 62); além disso, herda um passivo, uma situação de passes de jogadores da direcção de Godinho Lopes extremamente lesiva para o clube (a Holdimo2 pagou 20 milhões de euros pelos passes de 28 jogadores) tanto como um plano de reestruturação que previa o fim de todas as modalidades, excepto o futebol e o futsal, e incompatibiliza-se com os fundos de investimento de jogadores.

No momento em que Bruno de Carvalho é eleito, o Sporting era “só mais um clube que não fazia qualquer oposição às vontades de Jorge Mendes3” (Russo 2017, 346), um “banco de testes para os fundos de investimento globais” (Russo 2017, 317) de terceira geração, transnacionais e participados pelos clubes como forma de ultrapassar as proibições colocadas a terceiros. O Sporting teria o seu Sporting Portugal Fund, à semelhança de outros clubes portugueses e que o livro de Pippo Russo explica. Porém, durante o mandato de Bruno de Carvalho, a influência deste empresário dilui-se gradualmente e as posições extremam-se com a perda de Eric Dier para um clube inglês, a recompra de Elias ao clube brasileiro Flamengo e o caso que opôs o Sporting ao fundo de investimento sediado em Malta, a Doyen. Estava aberta a guerra contra os fundos, que “funcionavam para o futebol como a droga (...) Vinham com muito dinheiro, davam sensação de prazer e alguma calma, mas depois percebiam que não conseguiam resolver a dívida que já tinham e que ainda tinham de ir ao fundo receber a nova dose para pagar essa dívida” (Record 2020), explicou Bruno de Carvalho durante uma sessão do julgamento do processo Football Leaks, despoletado pelo whistelblower Rui Pinto. Curiosamente, a referida Doyen entregou uma queixa-crime na Polícia Judiciária contra Rui Pinto, sendo extraditado de Budapeste pelo Estado português.

Por fim, algo que diz muito sobre o perfil social do clube4: o clube tinha 700 funcionários com 5000 telemóveis associados, rubricara um contrato de leasing que dava direito a usar 20 carros e tinha 42 (pagava mais 22), existiam 200 lugares de estacionamento para funcionários e eram utilizados 400, sendo que algumas pessoas que já não estavam no Sporting ainda tinha cartões de acesso ao parque, um gasto de 6 mil euros mensais em café e de 25 mil euros em arranjos florais (Carvalho 2019, 100). Na época seguinte, a equipa de futebol alcançaria o vice-campeonato qualificando-se para a Liga dos Campeões, bater-se-ia pelo campeonato até à última jornada na época 2015/2016 (em processo de averiguações pelo Ministério Público e Polícia Judiciária, por indícios de corrupção praticada pelo Sport Lisboa e Benfica relativa ao suborno de jogadores do Marítimo e do Rio Ave) e alcançaria restantes terceiros lugares.

A 30 de Abril de 2018 Bruno de Carvalho (Carvalho 2018) publica um artigo em que resume a situação do clube: reequilíbrio da situação económico-financeira de todo o Grupo Sporting, crescimento sustentado de todas as linhas de receitas comerciais, redução e controlo de custos, crescimento das receitas de venda de direitos económicos de atletas (com as duas maiores transferências de sempre da história do clube, atingindo os 200 milhões de euros de vendas de jogadores sendo 154 milhões de euros mais-valias), recuperação dos direitos económicos de 37 jogadores no valor de 41 milhões de euros, permitindo que o Sporting ficasse com as receitas ao invés de as ter de passar a terceiros, rubricado o melhor contrato de direitos TV em Portugal num total global de 515 milhões, aumento do número de sócios para os 170 000 e do património com o Pavilhão João Rocha e forte investimento nas infra-estruturas e nas modalidades. Face a isto, explica Bruno de Carvalho, o activo da Sporting SAD ascendeu a 287 milhões de euros, duplicando desde 2013, o Capital Próprio é positivo em 17 milhões de euros, em comparação com o Capital Próprio negativo de 116 milhões de euros em 2013, redução da dívida bancária em 75 milhões de euros desde 2013.

Após décadas a acumular prejuízos, no espaço de cinco anos, a direcção de Bruno de Carvalho recupera um clube da falência e 2018 (em 2019 o clube é campeão europeu de futsal e hóquei em patins, com as equipas montadas sob a sua batuta) coincide com o ano de maior sucesso desportivo (nacional e internacional), fornecido pelas modalidades que, em 2013, estavam condenadas à extinção. Por fim, na referida publicação, o presidente revela avanços na reestruturação financeira, apontando uma melhoria das condições dadas pela banca, necessárias para que os sócios garantissem a maioria na SAD, “passando de 44 milhões para 17,5 milhões, dos quais já temos na conta reserva 5 milhões e no início da próxima época já teremos a totalidade necessária para garantir a maioria na SAD” (Carvalho 2018). Para finalizar, deixa uma alfinetada à Holdimo, que tinha pedido uma Assembleia Geral na SAD “pois (…) percebeu que rapidamente a sua posição ficará diluída (cerca de 10% face aos 26% actuais).” Ou seja, com a renegociação, os sócios estariam em maioria na SAD (90%) e accionistas como a Holdimo, de Álvaro Sobrinho, ficariam com 10% do total.

1.1. O Verão de 2018 e a pressão mediática

Se começássemos a escrever este texto de trás para a frente, perderia integralmente fundamento. Não valeria a pena examinar a amostra, nem aplicar qualquer técnica de análise e muito menos proceder a um enquadramento teórico, pois o presidente Bruno de Carvalho foi absolvido e ilibado de qualquer associação ou autoria nos dois processos que chamamos para objecto, o caso Cashball e a invasão à Academia de Alcochete.

Suspeita-se que o primeiro caso se tratou de um alegado suborno de 30 mil euros pago a um individuo pelo jornal Correio da Manhã para que incriminasse os dirigentes do Sporting Clube de Portugal num suposto caso de corrupção sucedido no campeonato nacional de andebol da época 2016/2017. Um dos implicados terá confessado no Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) do Porto a sua participação, e o denunciante foi acusado de corrupção desportiva na forma tentada. O segundo caso tratou-se de uma invasão orquestrada por adeptos e elementos de claques desportivas, na sequência de uma discussão verificada no aeroporto do Funchal, provocada por uma derrota na última jornada do campeonato nacional de futebol da época 2017/2018 que retirou a possibilidade do clube competir na Liga dos Campeões europeus, após ter perdido o título para o Futebol Clube do Porto. Do processo, foi apenas aplicada uma pena suspensa de cinco anos e 200 horas de trabalho ao agressor de um jogador do plantel, ferido na cabeça com um cinto. Curiosamente, ambos casos foram despoletados no dia 15 de Maio de 2018, uma terça-feira.

No dia 15 de Maio o jornal Correio da Manhã dá conta de um “escândalo de corrupção no campeonato de Andebol”, explicando que um arrependido teria contado sobre a compra de uma vitória do Benfica pelo Sporting e implicado o director desportivo na altura. Na capa do jornal, dois jogadores ladeavam o presidente Bruno de Carvalho que erguia uma taça em ambiente de festa. No dia seguinte, a Polícia Judiciária informava (Polícia Judiciária 2018) em comunicado que “deteve quatro pessoas pela presumível prática dos crimes de corrupção activa no desporto”. Na mesma tarde de 15 de Maio, a academia de Alcochete era invadida por um grupo de adeptos que tomou as instalações, ingressou nos balneários e agrediu, física e verbalmente, alguns dos elementos presentes. As imagens captadas por um telemóvel, repetidas em modo contínuo nas televisões, mostram um balneário com lixo espalhado pelo chão, envolto no fumo esbranquiçado das tochas e com alguns jogadores a vestirem-se à pressa, apercebendo-se o sorriso do médico do plantel a secundar um pedido de registo dos danos provocados pela fivela de um cinto na cabeça de um jogador.

Nesse dia, em declarações aos meios de comunicação, o primeiro ministro condenou o “acto de selvajaria”, o presidente da República disse-se “vexado pela imagem projectada por Portugal no mundo”, o presidente da Assembleia da República considerou que foi uma acção que ofendeu “os portugueses, o desporto português e o país, pelas repercussões internacionais que teve”. Num patamar secundário, Moura dos Santos, empresário musical, pede a “retirada do estatuto de utilidade pública” ao Sporting, e a imediata demissão de Bruno de Carvalho, considerando que “este tipo de situações [a demissão] se resolvem ou de uma forma pacifica, recorrendo aos meios legais disponíveis (…) ou de uma forma violenta” (Moura dos Santos 2018). Em entrevista ao jornal Sol, o presidente da Assembleia da República estendeu as acusações a “todos aqueles que contribuem, lamentavelmente, para aquilo que tem sido o ódio, a violência, o fanatismo, a corrupção no futebol português. Não são só de um clube, são de vários (...) que fazem do futebol português esta desgraça (...) incluindo, aqueles que fazem do Sporting Clube de Portugal esta miséria que estamos a viver hoje” (Silva 2018). Também Rui Pereira, ex-ministro do governo de José Sócrates, sócio e presidente da Mesa da Assembleia Geral do Benfica, mandatário da candidatura de Luís Filipe Vieira à presidência do clube lisboeta, difunde, em directo no canal televisivo da Cofina, a tese de “terrorismo”5, mesmo antes de o Ministério Público tomar qualquer posição, provocando a estupefacção e a gargalhada em peritos no assunto (Diário de Notícias 2019). Este pronunciamento seria vital para detenção de Bruno de Carvalho e para a prisão preventiva dos invasores de Alcochete, tese que viria posteriormente a ser derrotada em julgamento pela juíza Silvia Pires. Antecipando-se a qualquer investigação policial, os órgãos máximos do país, secundados por alguns sócios e adeptos do clube e de outros clubes rivais, haviam encontrado o único culpado, apontando-lhe sub-repticiamente o dedo.

A partir da invasão de Alcochete, a imagem pública do presidente Bruno de Carvalho sofre exposição diária nos diversos órgãos de comunicação social. A par disso, os órgãos sociais (Mesa da Assembleia Geral e Conselho Fiscal) demitem-se publicamente (a 17 de Maio de 2018 o presidente da Mesa da Assembleia Geral, Jaime Marta Soares, resigna em directo na estação televisiva TVI), pretendendo que o Conselho Directivo, presidido por Bruno de Carvalho, lhe siga o exemplo. Amplifica-se a contestação sistematicamente realizada durante os anos do seu mandato por um grupo de sócios que pede a sua demissão e a marcação de eleições, surgem vários candidatos e, a conta-gotas, alguns jogadores do plantel rescindem unilateralmente com o clube, alegando não ter condições para jogar futebol nem representar o clube. A 23 de Junho de 2018 é realizada uma Assembleia Geral destitutiva e no dia seguinte uma Comissão de Gestão passa a governar o clube até ao dia 8 de Setembro do mesmo ano, data que assinala a entrada dos novos órgãos eleitos. Alguns jogadores regressam ao clube, outros não. A 11 de Novembro de 2018 Bruno de Carvalho foi detido, no âmbito da investigação policial à invasão da academia de Alcochete.

1.2. Os processos contra Bruno de Carvalho

No dia 15 de Maio de 2018, após a invasão ao centro de estágio de Alcochete, foram colocados em prisão preventiva 38 indivíduos. Bruno de Carvalho, embora se tenha dirigido a 11 de Outubro desse ano ao Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP) de Lisboa para prestar declarações, é detido um mês depois por ordem da procuradora Cândida Vilar, numa noite de domingo, no âmbito do mesmo processo (Cotrim 2018). Note-se que a decisão surge na sequência de rumores jornalísticos de que estaria a planear uma fuga, facilitada pela condição de dupla nacionalidade e pela inexistência de acordo de extradição entre Portugal e Moçambique: Cândida Vilar usou fontes jornalísticas sem proceder a qualquer verificação dos factos e a coberto da tese do ataque terrorista que se sobrepôs à lei geral. Após a detenção, seria acusado pela procuradora Cândida Vilar de ter orquestrado a invasão da Academia de Alcochete e sobre ele recaíam os crimes de ameaça agravada, ofensa à integridade física qualificada e sequestro, classificados como terrorismo, acusação que fez furor e foi propalada em todo o género de plataforma mediática. O julgamento começou no dia 18 de Dezembro de 2019 no tribunal de Monsanto. Antes disso, a 6 de Julho de 2019, uma nova assembleia geral sancionava o presidente Bruno de Carvalho e o vogal da Direcção Alexandre Godinho, retirando-lhes o estatuto de sócio. Ao fim de 35 sessões de julgamento aos 44 arguidos, a escuta de 65 testemunhas de acusação e 90 de defesa, sem ser ouvido uma única vez durante o processo de instrução, Bruno de Carvalho acabaria absolvido e ilibado pela juíza Silvia Peres de todas as acusações.

Em ambos processos (destituição de direcção e expulsão de sócio), os sócios votaram convictos de que Bruno de Carvalho foi responsável pelo Cashball e pelo ataque de Alcochete, assunto subjacente na nota de culpa. No dia 23 de Junho de 2018, antes de se ouvir e discutir a referida nota de culpa, dando hipóteses de defesa aos acusados (o que não lhe foi permitido), as urnas abriram para a deposição do voto. A nota de culpa acusava Bruno de Carvalho e restantes membros do Conselho Directivo de terem impedido a realização da Assembleia Geral de 23 de Junho e de terem criado órgãos transitórios (ilegais, sob o ponto de vista do demissionário Presidente da Mesa da Assembleia Geral e convicção de muitos sócios e não sócios) da Mesa da Assembleia Geral e do Conselho Fiscal (não profetizados nos estatutos do clube, mas previstos na Lei Geral) com o objectivo de agendar uma Assembleia Geral para aprovação do orçamento da época desportiva de 2018/2019 e para eleição de novos órgãos demissionários. Estes actos foram classificados como usurpação de funções e criação de órgãos fictícios. Por fim, foi acusado do uso indevido dos meios do clube.

No processo de destituição de sócio, consta a frequência da Assembleia Geral de 23 de Junho de 2018 (autorizada publicamente pelo demissionário Presidente da Mesa e pela Comissão de Fiscalização presidida por Henrique Monteiro, ratificada em acta), a acusação de incitar à violência no interior do recinto (nesse dia, e apesar de algumas escaramuças e clima geral de agitação, não foi registada qualquer queixa nem solicitada nenhuma diligência policial, nem a acta lavrada relata qualquer caso do género), as publicações nas redes sociais, os comportamentos registados a 17 de Agosto de 2018 relativos à presença nas instalações do estádio, motivada pela existência de uma providência cautelar, tanto como a intromissão nas contas do clube.

2. Enquadramento teórico

Este texto tem como objectivo geral discutir o impacto da notícia na opinião pública, usando o assunto que definimos como “caso Bruno de Carvalho”. Pretendemos demonstrar que presença, implícita ou explicita, de referências que indiciavam a alegada autoria moral e factual dos crimes atrás reportados, foi peça central nos subsequentes processos de destituição da qualidade de Presidente do Conselho Directivo do referido clube desportivo e da qualidade de sócio, e que existiu um nexo de causalidade entre a irradiação, a leitura de notícias e a decisão dos sócios. Todo este processo visou colonizar a subjectividade (Merlin 2017), falseando e desprezando a verdade, ao mesmo tempo que gerava o desprezo, o ódio publico e a violência verbal sobre Bruno de Carvalho. Para tal, é necessário alinhar o mapa teórico sob o qual nos moveremos.

2.1. A notícia

Entende-se por notícia o texto informativo, relativamente curto, claro, directo e conciso elaborado de acordo com a estrutura clássica em forma de pirâmide invertida, decaindo do mais importante, relevante e actual, para o que é residual no acontecimento (Gradim 2000, 57). Uma boa notícia parte de um lead que revela imediatamente o facto, o sujeito, o tempo e o local, dispensando a leitura do remanescente ou sugerindo a sua leitura integral. Sem descurar outras fontes e aspectos da notícia, neste texto privilegiaremos a análise dos leads, pelas seguintes razões: fornecem um conhecimento imediato sobre a ocorrência, funcionam como chamariz para aquisição de jornais de uma imprensa portuguesa em declínio nas tiragens e nas receitas (Costa Silva 2019, 95) e em processo de competição ou de transição para o modelo digital, satisfazem uma população com fracos hábitos de leitura (Lima dos Santos, et al. 2007) que compra, em média, 1,3 livros por ano, prática que se ajusta à realidade da indústria livreira, a registar quebra de receitas há algumas décadas (Soares Neves, et al. 2014).

Apesar deste panorama, os usuários de jornais, lidos maioritariamente por homens, idosos e com nível de escolarização básica ou de ensino secundário, ultrapassavam em 2007 os leitores de livros e de revistas (Lopes 2011, 10) e eram a fonte preferencial de informação da população portuguesa; em 2019, segundo um estudo da Marktest, foram quantificados 6,6 milhões de portugueses que “contactaram” (leram ou folhearam) com jornais e revistas (Marktest 2019). Colocamos o verbo entre parêntesis para relativizar o contacto: leram uma página? Pegaram no jornal? Fizeram as palavras cruzadas? O estudo não o indica.

2.2. Opinião pública, espaço público e poder

Entendemos por opinião publica o conjunto de juízos livremente expressos por indivíduos que exercem o direito de emitir pareceres subjectivos e vivem em liberdade. Sob a perspectiva de Habermas, falamos de um espaço de associação, privatizado e regulamentado (Habermas, citado em Carreira da Silva, 2001, p. 118) que emerge num contexto de ascensão da burguesia e que toma como princípio político o liberalismo económico. Porém, é necessário advertir que as condições de produção de opinião não são equitativas, porque se ocultam posições em conflito, transformando-a muitas vezes num pronunciamento particular de uma corrente de opinião que rejeita a oportunidade de controvérsia. Assim, o controle da informação e da comunicação, constrói sistemas assimétricos nos quais os fluxos possuem apenas um sentido, são filtrados e verificados e, por esta via, geram “campos de extermínio semântico” (Castells 2009, 265) legitimados pelo consentimento na construção única de significados – as representações sociais.

A opinião pública constitui-se, geralmente, pela deturpação de um facto que, ao entrar nas sucessivas cadeias de transmissão social feita por intermédio de grupos ou pelo contacto interpessoal, e em associação com as codificações, as representações sociais e as filtragens psicossociais, reforçam a sua ambiguidade (Caetano e Rasquilha 2007, 65). Diria Mcluhan (Mcluhan 1946, 215) que o jornal, enquanto meio “quente”, “tende a incluir más notícias para assegurar a sua própria intensidade e a participação dos leitores”. As verdadeiras notícias são as más notícias, repisa, e os jornais são uma “forma confessional colectiva que fornece uma participação comunitária” (Mcluhan 1946, 210) e assim constrói referências comuns, criando opinião.

Acresce a importância dos líderes de opinião que, pelo seu estatuto e prestígio, exercem uma influência vital na sua creditação. A isto, sustidos em Weber, chamamos dominação e poder, a “probabilidade de, dentro de uma relação social, impor a vontade própria mesmo contra a resistência” (Weber 1997, 81).

2.3. Hegemonia, manipulação e matraqueagem

Usamos o conceito de hegemonia elaborado por alguns autores de linhagem marxista no sentido de dar conta do movimento exercido pelos mass-média no predomínio da construção ideológica. Hegemonia e consciência, coligados, remetem-nos para o parecer de que qualquer posição é representativa de uma classe e do seu sistema de pensamento (Lukacs 1979, 32), “em moldes que asseguram a sujeição à ideologia dominante” (Althusser 1970, 22).

Esta posição filia-se à perspectiva metodológica de construção do objecto em Marx e Engels, de que o conhecimento parte do inventário das aparências e da extracção das suas propriedades e descrição do seu movimento ideal (Lenine 1981, 23) e que a reprodução económica encontra suporte numa reprodução ideológica, super-estrutural, que os homens não dominam “nas condições escolhidas por eles, mas antes sob condições directamente herdadas e transmitidas pelo passado” (Marx 1869, 13) e que aflora, inicialmente na obra deste autor, no 18 de Brumário. Sustentando-se nas massas, Althusser adiciona a especialização institucional de carácter repressivo (Althusser 1970, 43), de sentido descendente, rumo aos subordinados, e Freud (Freud 2011) aponta-lhe o cariz hipnótico provocado em indivíduos de fraco rendimento intelectual. Aqui se incluem os mass-média como veículos propagadores e reprodutores da ideologia dominante.

De igual modo, trazemos à discussão o conceito de manipulação, aferido por Tchakhotine (Tchakhotine 1952), e de matraqueagem. O primeiro reporta-se à “intenção deliberada de suscitar uma mudança de opinião” (G. Namer 1976, 171), substituindo a inclinação da razão pela omnipotência das pulsões instintivas, recorrendo à repetição, com recurso à violência sensorial, aos slogans, gestos e símbolos, em formas equivalentes às da publicidade. É uma estratégia de manipulação que tem baseia a sua acção na decomposição do quadro de referência do adversário, suprimindo todas as informações que possibilitem uma comparação ou uma crítica. Quanto à segunda, apoia-se na repetição ininterrupta da mensagem, jogando com factores como a intensidade, o número, o tempo total de exposição e o seu carácter traumatizante (G. Namer 1976) na direcção das massas.

3. Metodologia

Para a elaboração deste texto, usamos a seguinte metodologia: reportando-nos aos meios impressos (jornais), analisamos as capas dos jornais e os leads das notícias elaboradas entre 2018 e 2019 cujo assunto era Bruno de Carvalho; reportando-nos aos meios não impressos (televisão), ponderamos o discurso emanado, nas mesmas datas e com referência ao mesmo sujeito. Tomamos como amostra (não causal e elaborada por conveniência) as notícias produzidas pelos diversos órgãos de comunicação social, incidindo nas publicações do grupo Cofina, especialmente no diário desportivo Record, no diário generalista Correio da Manhã e no seu canal televisivo, a Correio da Manhã TV (CMTV).

A nossa questão de investigação foi a seguinte: de que forma as capas de jornais e os leads (produzidos nos meios impressos e nos meios não impressos) influenciaram a edificação da imagem pública de Bruno de Carvalho? De seguida, estabelecemos as seguintes hipóteses de investigação:

  1. As capas e os leads produzidos pelos meios de comunicação social impressos e não impressos responsabilizam directamente Bruno de Carvalho como autor do processo Cashball e do ataque à Academia de Alcochete
  2. As capas e os leads produzidos pelos meios de comunicação social impressos e não impressos conceberam uma imagem negativa de Bruno de Carvalho.

Na sequência, elegemos as nossas categorias que manuseamos com recurso a um programa informático de análise qualitativa. Todas elas se reportam à apreciação de Bruno de Carvalho.

  1. «irritabilidade», que remete para as representações sociais acerca de um indivíduo cuja personalidade e práxis é assinalada pelo nervosismo, pela ira e pela raiva;
  2. «instabilidade», que aponta no sentido da imaturidade, do desequilíbrio, da fragilidade, da frivolidade e do capricho;
  3. «desconfiança», que dá conta de um perfil psicológico de um individuo suspeito de congeminar nas costas e de manipular para obter vantagem;
  4. «medo», que avalia as representações sociais acerca de um individuo que na sua qualidade de presidente do clube, assusta, apavora e amedronta os opositores, causando receio, apreensão, ansiedade e dúvida. Outra leitura que daqui se faz, é a postura cobarde de quem monta armadilhas.

4. Resultados

4.1. Desclassificação sistemática e culpa antecipada

Observando as manchetes do jornal Correio da Manhã, redigidas a um ritmo diário desde o dia 16 de Maio de 2018 até ao dia 23 de Junho de 2018, data da Assembleia Geral destitutiva, verificamos que reiteram estas categorias: “ajudante de Bruno corrompe finalista da Taça” (referência a director desportivo do clube e ao processo Cashball); “Bruno resiste: não nos demitimos”; “faltam duas demissões para Bruno cair”; “Bruno culpa jogadores pelo terror”; “bilhetes pagam saco-azul de Bruno”; “Bruno forçado a sair: ou se demite ou é suspenso de sócio”; “luvas sob suspeita – queixa contra Bruno de Carvalho”; “Bruno faz chantagem com salário dos jogadores”; “Bruno ameaça dirigentes dos órgãos sociais – terrorismo psicológico”; “Bruno gera reviravolta na vida de Bas Dost”; “Bruno queima 135 milhões”; “sócios pagam para expulsar Bruno”; “Bruno pressiona funcionários”; “Bruno barra comissão de gestão”; “Sporting paga dentista a toda a família de Bruno”; “queda de Bruno trava rescisões”. Um jornal do mesmo grupo, a Cofina, repete semelhante conteúdo nas suas manchetes: em letra garrafal, desde o dia 15 de Maio de 2018, o jornal Record estampa nas suas capas “terramoto” (a propósito da rescisão do treinador, após um jogo em que o clube não se classifica para a Liga dos Campeões), “terror” (no dia seguinte à invasão da Academia de Alcochete), “Jesus fica se Bruno sair” (dois dias após a invasão da Academia), “Agarrado (em letras amarelas, destacadas, sugerindo sub-repticiamente a alegada toxicodependência do presidente) ao poder”, “Bruno vai ao Jamor”, “Mundo Sporting apela aos jogadores” (uma capa a insinuar que um conjunto de personalidades estariam a tentar salvar o clube).

A 20 de Maio de 2018 disputa-se a final da Taça de Portugal, o clube perde o jogo, e até ao fim do mês de Maio Bruno de Carvalho é sistematicamente matéria de capa: a propósito da rescisão unilateral movida pelos jogadores do plantel6, da demissão dos órgãos sociais, da contestação de alguns sócios, da sua relação com o treinador. O mês de Junho repete os mesmos assuntos e lança os putativos candidatos às supostas eleições no clube, menciona a escolha de treinadores e de jogadores que estava a ser tratada pelo conselho directivo não demissionário, grava os avisos de jogadores a propósito da rescisão unilateral com o clube, assim como foca as diatribes jurídicas sobre a legitimidade dos órgãos e das assembleias. A 10 de Junho a capa do Correio da Manhã exibe uma fotografia de Bruno de Carvalho e sublinha-a com “Bruno de Carvalho com plenos poderes nos «seus» (entre aspas, pretendendo sublinhar a suposta autocracia do presidente) estatutos. Quero, posso e mando”.

A 30 de Junho de 2019, o Correio da Manhã participa que “Brunistas (alcunha criada para designar os sócios que se opõe à direcção de Frederico Varandas) incendeiam assembleia de Varandas”, noticiando a Assembleia Geral Ordinária do dia anterior. A partir dessa data, Bruno de Carvalho volta às capas do Correio da Manhã, ocupando, desta vez, muito menos espaço: “Bruno quer levar claque à sala de audiências”; “Vice tira tapete a Bruno”; “Sporting aperta Bruno – SAD pode pedir indemnização por danos”; “sócios expulsam Bruno de Carvalho”. A 11 de Julho, “Bruno mandante no ataque a Alcochete”; a 17 de Julho, “Bruno de Carvalho na lista negra dos terroristas”.

A 2 de Agosto de 2019, o Correio da Manhã anuncia “Bruno julgado por terrorismo”, estando os “98 crimes dados como provados” porque “deu o aval para o ataque aos jogadores em Alcochete”. Até ao dia 19 de Novembro de 2019, Bruno de Carvalho desaparece das manchetes do Correio da Manhã, data em que surge associado à famosa frase “façam o que quiserem”. Para trás, ficava a Assembleia Geral que lhe retirava, a si e a Alexandre Godinho, o estatuto de sócio. Analisemos com maior pormenor cada uma das categorias.

4.2. Construindo a figura de Bruno de Carvalho

4.2.1. Ditador-pirómano

A questão da irritabilidade, assinalada pelo nervosismo, pela ira e pela raiva, surge em episódios onde ser narram as alegadas ameaças aos funcionários do clube, em artigos de opinião em que é acusado de ser ditador (Tavares 2018) e presidente do Sporting Clube de Pyongyang, segundo um director de um jornal (Carvalho 2019, 155), ou em declarações radiofónicas prestadas por Carlos Severino, antigo candidato à presidência do clube, que repisa o mesmo assunto. Paulo Sargento, psicólogo e comentador em programas de televisão, comenta a “omnipotência narcísica” de quem se considera “o único capaz de resolver os problemas e de representar o bem” (Sargento 2018). Além disso, a sua frequente presença no espaço mediático, em conferências de imprensa ou quando despoleta num programa de televisão o caso dos vouchers oferecidos pelo Benfica aos árbitros (processo de corrupção desportiva actualmente em investigação), o epíteto de ser «presidente-adepto», moldaram a imagem de “pirómano do futebol português (…) um produto tóxico que tem de ser removido do futebol” (Geraldes 2016), como foi sobejamente apelidado por jornalistas e fazedores de opinião. Por fim, importa não esquecer o “caso da Cuspidela” em que esteve envolvido o presidente do Futebol Clube de Arouca, agremiação em actual processo de insolvência (ZeroZero 2020), um acidente registado em Novembro de 2016 pelas câmaras de segurança do clube e bastamente explorado na comunicação social. Na sequência, Bruno de Carvalho seria absolvido da queixa do presidente do Arouca e o tribunal de Lisboa extinguiria o processo.

4.2.2. Garoto-desequilibrado

A questão da instabilidade, que aponta no sentido da sua suposta imaturidade, desequilíbrio, fragilidade, frivolidade e capricho, surge, à cabeça, no repetitivo tratamento pelo nome próprio (o Bruno, ao contrário de Luís Filipe Vieira ou de Jorge Nuno Pinto da Costa, presidentes dos outros clubes denominados como «grandes»), não por familiaridade, mas como tentativa de menorização e desqualificação das capacidades pessoais e profissionais. Além disso, é assunto em vários momentos: nas opiniões de adversários presidenciais, como Dias Ferreira, que acredita que “ele não está bem”, ou Abrantes Mendes, que reitera que “Bruno de Carvalho tem um problema de personalidade (…) neste momento, precisa de muita ajuda, não está bem”; do antigo presidente Dias da Cunha, por altura da contratação de Jorge Jesus, que lhe aconselha o “manicómio” (Dias da Cunha 2015); também Paulo Abreu acusa o seu “estado de desequilíbrio” e Eduardo Barroso assegura um presumível “burnout” (Roseiro, Fernandes e Tavares 2018). No campo da definição científica das patologias, Paulo Sargento, comentando a presumível amálgama entre personagem e a pessoa, alvitra “questões de saúde” (Sargento 2018) para enquadrar o momento pós-ataque a Alcochete e assegura que Bruno de Carvalho “qualquer coisa que diga tem dez câmaras atrás dele (…) sabendo de antemão que a maior parte das coisas que vai dizer são fictícias (…) de uma personagem que criou e está confundido com ela”. A sua colega de profissão, Joana Amaral Dias, acompanha-o no desenho de um perfil psicológico e diz ser um indivíduo “obcecado”, “bizarro”, “omnipotente”, “agigantado” (Cachão 2019), que “acusa e responsabiliza tudo e todos (...) não revela pinga de auto-crítica, (...) não passa de uma vítima, de um injustiçado, um bode expiatório, julga-se um herói que lutou contra os poderes fáticos e tácticos” e que deve ser afastado, prescreve, para não destruir o clube.

O universo de críticas expande-se a outras dimensões que não as desportivas, levando o cançonetista António Zambujo, adepto do Benfica e presença assídua nos eventos desportivos e sociais do clube, a assegurar que “Bruno de Carvalho foi a gota de água de tantas coisas más que fez, de tanta merda que fez, fez com que eu perdesse o interesse pelo futebol (…) Obrigado presidente Bruno de Carvalho e a todos os outros pelintras” (Zambujo 2018). A isto adicionam-se os relacionamentos amorosos complicados (Flash 2018) onde não faltam as referências aos “gritos e insultos”, “ameaças de suicídio” (Benard Garcia 2018) e se promete numa publicação do grupo Cofina o “relato do terror”, a privação de rendimentos que motivava o recurso a boleias com o advogado, o aluguer forçado de uma casa e as imputações de toxicodependência e alcoolismo (Flash 2019).

4.2.3. Louco-aldrabão

A questão da desconfiança, que dá conta de um perfil psicológico de um individuo suspeito de congeminar nas costas e de manipular para obter vantagem, encontra-se, à cabeça, no longo processo iniciado com a invasão da Academia até à sua conclusão. Observamos nas cartas de rescisão de alguns dos jogadores do plantel, que curiosamente, partilham argumentos, palavras, colocação de pontos e virgulas nos mesmos sítios, observações como “crítica ou ataque permanente, por isto ou por aquilo” (Podence 2018, 4), acusações de humilhar a equipa, fotografias de mensagens trocadas com o plantel por via telefónica ou colocadas no mural do Facebook, as tentativas de provocar “divisões no grupo de trabalho, destabilizando-o e gerando um ambiente totalmente adverso para a disputa do jogo que iria ocorrer dali a pouco tempo, numa atitude de total irresponsabilidade e desrespeito pela actividade profissional dos jogadores” (Podence 2018, 13).

Pelo meio, destacam-se as classificações de “morto-vivo” e de “mentiroso compulsivo”, proferidas por Álvaro Sobrinho (Jornal I 2018), de “louco”, “aldrabão” e “atrasado mental”, enunciadas pelo cançonetista Victor Espadinha (Espadinha 2017), um “brincalhão”, proclamadas por António Figueiredo na CMTV a 20 de Novembro de 2019, um “louco” ou “alguém que não está a tomar a medicação ao tempo certo. Aquilo está tudo descontrolado”, proferidas por Jorge Amaral no dia 1 de Março de 2020 na CMTV, um “cobarde” e “um passarinho (que) tem de aprender. Ou então o Doutor Varandas que arranje alguém especialista em áreas mentais e que trate dele”, segundo Octávio Machado, a 22 de Junho de 2017 na CMTV (Costa 2017).

4.2.4. Cobarde-antipático

A questão do medo, que avalia as representações sociais acerca de um individuo que na sua qualidade de presidente do clube, assusta, apavora e amedronta os opositores, causando receio, apreensão, ansiedade e dúvida, assim como comprova uma postura cobarde e antipática de quem monta armadilhas, acha-se em vários momentos. Em primeiro lugar, nas expressões profusamente propaladas como “façam o que quiserem” ou “é chato”, propositadamente descontextualizadas para serem matraqueadas.

A expressão “façam o que quiserem”, amplamente difundida pela comunicação social, foi desconstruída em tribunal e não se encontrou qualquer nexo de causalidade entre o que foi dito numa reunião com as claques, ocorrida num contexto de grande fragilidade desportiva e emocional (a esposa de Bruno de Carvalho encontrava-se hospitalizada, com uma gravidez de risco), e o ataque a Alcochete. Em tribunal, o director de operações do Sporting Clube de Portugal revelaria que

“os adeptos não concordavam com a forma como o presidente se dirigia aos jogadores (nem) estavam satisfeitos pelo desempenho da equipa. Sugeriram fazer mais cânticos, mais tarjas, frases, coreografias específicas para puxar pelos jogadores, deslocarem-se a Alcochete para falarem com os jogadores e tentarem incentivar. Foram várias as ideias em cima da mesa, com muita gente a dar palpites. O Bruno de Carvalho disse: “organizem-se, façam o que quiserem e depois informem-me” (Lusa 2019).

Por isso, examinemos o “é chato”, fragmento de uma longa comunicação7 realizada por Bruno de Carvalho ao fim do dia 15 de Maio de 2018, data do ataque à Academia de Alcochete.

José de Pina, num programa desportivo, citado pelo Jornal I, afirma que “a mudança que o actual presidente trouxe e que entusiasmou muitos sportinguistas como eu, está a sofrer desvios inaceitáveis (...) Presidente, acabou. É chato, mas acabou”, secundado por Pedro Candeias (Candeias 2018), que, designando a falta de empatia de Bruno de Carvalho, escreve que “Para ele, tudo aquilo que se passou nas últimas semanas é apenas “fumaça”(referência directa a Pinheiro de Azevedo, tio de Bruno de Carvalho, apontando um episódio da vida política do pós-25 de Abril de 1974) (...) É que um dos problemas da relativização é que esta se confunde com a falta de empatia. E a falta de empatia é chato de ver”.

A banalização da expressão chega a colunistas, que, a propósito de diferendos políticos, consideram que a resposta da “senhora ministra foi semelhante à de Bruno de Carvalho, a propósito das agressões em Alcochete: «É chato!»” (Pinhal 2020). Por fim, porque existem muitas referências, Vítor Espadinha, na sequência de um episódio em que, à porta do estádio do Sporting Clube de Portugal, ameaçou agredir Bruno de Carvalho, entrevistado num dos muitos fóruns promovidos neste período pela CMTV, e onde estavam também presentes os opositores Octávio Machado, Vítor Ferreira e Carlos Severino, considera que “bater em doentes mentais é um bocado chato (...) Temos de ter respeito porque o homem devia estar internado e está cá fora” (Espadinha 2018).

Conclusão

Levando em consideração aquilo que foi exposto, parece evidente que foram utilizadas diversas estratégias para fabricar a imagem pública de Bruno de Carvalho, frequentemente distribuídas pelas diversas publicações para cobrir a totalidade do público-alvo, assumindo o grupo Cofina uma grande quota da responsabilidade nessa edificação. As capas de jornais, os rodapés televisivos, as aberturas de notícias e os leads produzidos na generalidade pelos meios de comunicação social impressos e não impressos, reproduzindo opiniões ou pareceres de terceiros que não o corpo redactorial ou o próprio corpo de redactores, responsabilizaram directa ou veladamente Bruno de Carvalho como mentor do Cashball e do ataque à Academia de Alcochete. Os reflexos práticos desta campanha, confessados na primeira pessoa, vão desde o susto instigado a uma criança por estar a fumar (reportando-se ao caso da “cuspidela”) à acusação directa feita pelos líderes de opinião com mais prestígio simbólico. Aliás, arriscamos afirmar que qualquer pessoa, de qualquer estrato social, posição geográfica ou faixa etária, se for convidada a isso, emitirá com maior facilidade um juízo acerca de Bruno de Carvalho do que acerca de Luís Vaz de Camões, Fernando Pessoa ou José Saramago. Mais uma vez, arriscamos que a maioria dos comentários será depreciativo e que o rebaixará às condições atrás propostas.

Bruno de Carvalho surgiu no Sporting Clube de Portugal vindo das bases e desprovido de qualquer ligação com a longa linhagem que se ia revezando nas direcções desde o fim da presidência de Sousa Cintra. A partir dos mandatos de José Roquette, descendente dos fundadores do Sporting Clube de Portugal, o clube apresentou sempre resultados negativos: Godinho Lopes deixou um buraco de cerca de 96 Milhões de euros, José Eduardo Bettencourt de 70 Milhões de euros, Dias da Cunha de 26 Milhões de euros e vendeu tudo o que restava do património não desportivo do clube (Centro Comercial Alvaláxia, Clínica CUF, Holmes Place e edifício Visconde de Alvalade), José Roquette de 14 Milhões de euros e vendeu terrenos do antigo estádio a uma empresa cujos filhos do dono eram afilhados de Godinho Lopes. Bruno de Carvalho não fez mais nada do que romper com a forma enraizada de fazer negócios no clube, lesiva e desrespeitosa, colocar o clube a dar lucro, reduzir o passivo, construir um canal televisivo e um pavilhão desportivo, colocar as equipas a lutar nas melhores competições e a garantir títulos. Além disso, foi voz activa na luta contra os fundos de investimento e partilha de passes de jogadores por terceiros, assim como a favor da introdução de vídeo-arbitro nos jogos de futebol. Tudo isso, incluindo as horas dedicadas a dissecar-lhe a personalidade e a suposta responsabilidade num dos muitos ataques que regularmente acontecem em recintos desportivos nacionais e mundiais, sem ter direito a contraditório, saiu-lhe bastante caro. Porém, mantém uma longa lista de admiradores e seguidores em todos os quadrantes desportivos, adeptos ou sócios de clubes adversários. Talvez maior do que a dos seus chatos detractores, que continuam a fazer o que querem com o bom nome de um ser humano.

Notas Finais

1A Cofina é um grupo empresarial do sector de media fundado em 1990, no segmento da imprensa. Actualmente possui 5 jornais, 3 revistas e um canal de televisão por cabo. Está cotada na Euronext Lisbon (Cofina 2018)

2A Holdimo Participações e Investimentos S.A. é uma sociedade que opera no ramo do desporto e do turismo. O seu presidente é Álvaro Sobrinho, um empresário angolano, antigo director do Banco Espírito Santo (Portugal e Angola). Em 2013 adquire 29,8% do capital da Sporting SAD. No presente momento, é suspeito de ter recebido dinheiro de forma não justificada (BES Angola) que, alegadamente, terá “lavado” na SAD do Sporting Clube de Portugal. É arguido no processo LEX, por suborno de juízes. Na Suíça foram-lhe arrestados 150 milhões de euros, mas em Portugal o arresto foi reprovado por quatro vezes pelo tribunal da relação de Lisboa. No dia da Assembleia Geral destitutiva, terá alegadamente recebido um indulto da Ministra da Justiça para entrar em Portugal e poder votar.

3Jorge Mendes é um empresário de jogadores e treinadores de futebol, proprietário da Gestifute. Cristiano Ronaldo é o seu activo mais valioso, entre outros jogadores oriundos do campeonato português e a actuar nos campeonatos de futebol mais importantes do mundo. Os antigos jogadores do Sporting, que rescindiram unilateralmente com o clube após a invasão da Academia de Alcochete, Rui Patrício, Rafael Leão, Daniel Podence, são por si agenciados.

4O Sporting tem associadas três organizações, instituídas à margem dos órgãos sociais: o Grupo Stromp e os Cinquentenários, constituídos na década de sessenta do século XX, e os Leões de Portugal, de formação que se reporta à década de oitenta do mesmo século. A admissão às três organizações requer antiguidade e relevância nos planos associativo, dirigente e desportivo, e estas pretendem a promoção dos valores e códigos de ética do clube. Os Leões de Portugal são uma Instituição Particular de Solidariedade Social desde 1997. Os outros dois grupos dispensam estatutos, regendo-se por códigos internos.

5Rui Pereira cita a lei anti-terrorista criada depois do episódio das Torres Gémeas, a 11 de Setembro de 2001, adicionando à tese de terrorismo a participação em motim e ofensa à integridade física (Observador 2018). Assinaria vários editoriais no jornal Correio da Manhã onde susteve e reforçou a sua tese.

6O processo de rescisão unilateral dos contratos por justa causa com o Sporting foi um assunto que ocupou a mancha dos jornais neste período. Após o ataque à academia de Alcochete, alguns dos jogadores do plantel enviaram uma carta dirigida à SAD em que alegavam temer pela segurança e apontavam o dedo ao presidente Bruno de Carvalho e à “pressão inaceitável (…) insinuando que os maus resultados seriam responsabilidade de falta de profissionalismo dos jogadores”. Na carta constava, entre outros assuntos, a incredulidade pela publicação no Facebook de um desabafo do presidente após uma derrota num jogo a contar para a Liga dos Campeões, o apodo de “crianças amuadas” e de serem “alvo de violência psicológica e violência física”. Em suma, a carta de rescisão elegia Bruno de Carvalho como o culpado do ataque a Alcochete. Esta carta, comum aos jogadores que rescindiram, foi redigida por João Pedro Varandas e Rogério Alves, segundo o presidente Bruno de Carvalho (Carvalho 2019, 166). Na altura rescindiram Bas Dost, William Carvalho, Rodrigo Battaglia, Ruben Ribeiro, Gelson Martins, Bruno Fernandes, Daniel Podence, Rafael Leão e Rui Patrício. Bruno Fernandes, Rodrigo Battaglia e Bas Dost regressariam ao clube. O primeiro, a troco de uma comissão de 1,6 milhões de euros paga ao seu empresário, viu o seu contrato receber uma adenda que obrigava o Sporting a indemnizar o jogador e o seu empresário se rejeitasse alguma proposta igual ou superior a 35 milhões de euros. A cláusula de rescisão imposta por Bruno de Carvalho era de 100 milhões de euros. Foi vendido por 55 milhões de euros, mais 25 milhões por objectivos, ao Manchester United em 2019. Dos 55 milhões, 10% foi directamente para empresários. Actualmente, o clube deve quase 28 milhões a empresários, com a Gestifute de Jorge Mendes (empresário de William, Gélson, Rui Patrício e Daniel Podence) à cabeça (Sapo Desporto 2020).

7“Os jogadores querem sentir-se seguros e queremos é que eles estejam bem para ganharmos o troféu. Tenho de repudiar todas estas situações. Isto não é frustração, é crime público. E quero pedir, sobretudo, calma ao universo sportinguista. Isto foi chato e temos de nos habituar que o crime faz parte do dia a dia. Já ouvi uma série de teorias mirabolantes, uma delas sendo que este é o meu “modus operandi”, porque nas Assembleias Gerais não deixo quem quer falar mal, falar. É falso. O meu “modus operandi” não é gostar de ver atletas e staff, que são a família que escolhi, serem agredidos (Teixeira 2018).

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